quinta-feira, 11 de julho de 2019

CLÁUDIO GOULART 19542005


CLÁUDIO GOULART 19542005

CARTA INGÊNUA
Meu nome é Jorge. Caí em uma armadilha. Entrei em um labirinto e não tenho alternativa senão achar a saída. Tento, mas não vejo como pensar nos fatos que me trouxeram aqui pode diminuir os perigos e dificuldades que se apresentarem nesse percurso. Posso tentar imaginar um jeito de marcar os corredores para não me perder.Avistar a paisagem de fora será minha recompensa. Não tenho compromisso em libertar nenhum povo, realizar qualquer proeza, conquistar nenhum título. Por minha própria conta e risco arrisco minhas fichas para continuar no jogo, simplesmente. Já perdi algumas batalhas na vida e suponho que aprendi alguma coisa com os erros que me levaram às perdas, o que não significa necessariamente vencer as batalhas que virão. Vencer ou conquistar, aliás, são faces semânticas de uma mesma moeda que a luta cotidiana valoriza ou menospreza. Sou onde não estou como agora em que essas palavras são lidas ou descartadas.
*Cartas Ingênuas se tratava de um projeto de cartas abertas endereçadas a autoridades brasileiras de diversas áreas. Conheci em 1985. O conjunto de textos tinha função de externar o pensamento do escritor/remetente aos leitores destinatários. Vinham dentro de um envelope criado pelo autor e eram vendidas de forma independente.

A ARTE DE PERDER
O mapa da cidade é a anatomia de um corpo na visão do poeta. Amsterdam e Porto Alegre: dois mapas, duas cidades, dois corpos. O corpo em duplicidade, o corpo como ideia de que o corpo deva ser existência, o corpo sendo e o corpo imaginado, representado. Elizabeth Bishop perdeu duas cidades, dois continentes, e as chaves de casa, não foi um desastre como perder-se do corpo querido.
Enquanto a Europa vivia os tempos derradeiros da guerra fria, e preparava a unificação e o fim da divisão do mundo em blocos comunista e capitalista, no Brasil a ditadura militar ia paulatinamente perdendo a capacidade de camuflar os efeitos nefastos do golpe militar de 1964.
Em 1976, Claudio Goulart embarcava para aventurar-se como artista em Amsterdam. O amigo e amor Flavio Pons seria o corpo a acolher Claudio no país. Fazer brotar cidadania em terra estrangeira é árdua tarefa que requer desapego imensurável de si. Por ser o local de escolha para sua morte, Amsterdam foi esse lugar que aconteceu ao artista como pátria. Imagino que o Claudio tenha sido um dos que ajudavam a divulgar em Porto Alegre as noticias que nos chegavam, da liberdade sexual, da consciência ecológica, da descriminalização das drogas, do uso de bicicletas na Holanda, especialmente em Amsterdam, como manifestações que iriam povoar o imaginário dos jovens aqui na “carroça”.
Claudio soube manter-se conectado ao sistema internacional das artes mediando a ambiguidade cultural destes dois continentes, de origem e de escolha, expandindo o alcance por outros países onde seu trabalho pode ser realizado.

CORPO
A história da Arte é a história do corpo. Desde a mão carimbada na caverna da pré-história, passando pelas representações dos corpos sagrados, mimetizados, até a desconstrução do corpo no espaço de representação e, hoje o corpo fragmentado, reinventado na virtualização tecnológica.Na História o corpo foi torturado, glorificado, moldado e libertado, modificado, genética e esteticamente transformado.Picasso destruiu o espaço de representação e os corpos angulosos da primeira pintura cubista impuseram uma nova compreensão estética. A vida é plena de sentidos do corpo nu, em pé, na escuridão, no meio do quarto, num romance de Clarice Lispector. Nos museus os corpos transitam e fruem de objetos que nada significariam não fosse essa presença humana. Os objetos são o corpo expresso, pois existem na medida da relação exercida pelo corpo. 
Também aos outros o corpo é objeto, na medida em que a presença ocupa espaço/tempo/memória. Porque guardamos como objeto de afeto, de desejo, de motivo, de repulsa e de imagem acaba por se definir aquilo que somos coletivamente: o nosso corpo em corporativismo.
Nos anos de 1960, a Body Art prenunciava o engajamento que iria radicalizar a arte não mais como representação e sim apresentação exigindo um salto imaginativo para acompanhar a transcendência do objeto/suporte. A pós-modernidade cujo auge ocorreu nos anos de 1980, apesar da revolução tecnológica, cultural, em todos os sentidos da humanidade, não foi capaz de melhorar desigualdades sociais.A arte produzida então ampliou exageradamente o leque de manifestações. Nunca antes foi tão heterogênea em forma e conteúdo.
Vemos ainda hoje, no entanto, a fome dizimando populações no mundo todo, guerras e desigualdade por todo lado, opressão capitalista que opera agora com aparato tecnológico para a manutenção de exploração. Dominação de corpos narcísicos, na necessidade dos tempos.
Do corpo emanam todas as possiblidades e maravilhas sensoriais. O tato, a visão, o olfato, a audição, o paladar, até a intuição, o sonho, as inconsciências, as marcas e dores e prazeres significam importância e valor da existência humana. Mas não é o corpo que contém a alma, ao contrário, é a alma que vai com o passar da existência sendo o corpo. A memória do corpo, a ilusão de um corpo possível, o corpo importa e define. O corpo é objeto limitado quando na infância exige aprender, engatinhar, caminhar, correr, crescer.
Na juventude ele é obstaculizado pelas responsabilidades, pelas exigências da maturidade, da autonomia, na inevitável consciência dos erros e acertos. Na velhice o corpo é alvo de cuidado e atenção, na medida em que as fragilidades vão se impondo. Quando as células param de morrer elas deixam de se renovar até a morte do corpo.
A pesquisa de Claudio em arte se contextualiza juntamente a estética de outros artistas que,assim como ele, pertencem à geração consagrada nos anos de 1980 e que de alguma forma usaram do corpo, e do próprio corpo para embasar sua produção. Entre esses, os participantes da 16ª Bienal de São Paulo: Hudinilson Jr., Vera Chaves Barcellos, Regina Silveira, Rafael França, Alex Fleming.

QUANDO O HORIZONTE É TÃO VASTO
Desenhos, colagens, objetos, vídeos, documentos, fotografias estão expostos na galeria da Fundação Vera Chaves Barcellos.
A exposição poderia ser descrita como representativa da poética visual do artista, que pesquisa diversas relações do corpo, com outros corpos, com a dor, com o prazer, com o espaço, com o tempo, com as identidades, usando para tal do próprio corpo, não como representação autobiográfica apenas, mas explorando possibilidades que descontrói sua identidade no momento que a mesma se apaga em função do discurso que a obra impõe.
Em vários trabalhos o artista se apresenta com venda nos olhos. Por que não pode assistir ao mundo que o massacra, como um condenado em frente ao pelotão de fuzilamento? Talvez. Mas pode ser também para que, bloqueando o sentido da visão consiga enxergar para dentro de si, conscientemente acurando a própria sensibilidade. Ou ainda para manifestar como num espelho a cegueira que nos impede de perceber o que se passa ao nosso redor. Os desenhos e colagens bastante simplificadas apontam para o desenvolvimento de ícones imagéticos que se repetem como sinais gramaticais da escrita visual na obra. Há experiências de uso da imagem em movimento. Meios de reprodução do trabalho em rede. A arte postal, que é uma forma de atuar em rede prepara uma futura desconhecida forma de continuidade então com aparato tecnológico da WEB. Os trabalhos com discurso políticos queapresentam questões sociais, pensamentos sobre o corpo. Há muito por ver conhecer de Claudio Goulart.
A arte exige criação de execução não repetível, pois o artista impõe para si formas de trabalho que são peculiares a cada realização. Cada solução especifica em cada tarefa deve resultar como algo que não poderia jamais ter sido produzida de outra forma. É a busca da originalidade.Aindaassim sinais da elaboração, nos andaimes invisíveis dessa construção que exigiu estudo e experiência prévia sejam sentidos pois o artista desconstrói ao mesmo tempo que acrescenta uma nova camada de sua percepção ao resultado apresenta. Neste sentido Claudio Goulart é artista.
Em trabalho exaustivo e persistente de continuar sua obra ele se mantém ora na luz outras na penumbra como novídeo onde dois corpos nus se movimentam enrolados por fios como novelos, e nesse movimento, enquanto um desenrola osfios de seu corpo o outro vai tendo o seu corpo coberto pelo mesmo fio. Também sutilmente os dois corpos ao girarem se mostram mais ou menos iluminados na tela, ou se escondem no lado pouco iluminado à medida que avançam ou recuam.Metáfora de relações afetivas que oscilam da visibilidade ao apagamento conforme espaço deum e outro, onde suas personas interagem. 

AÇÃO EDUCATIVA
Quanto é preciso conhecer da Arte nos livros, na História, nos relatos para que o repertório seja acionado e permita acessar, mediar o sistema da Arte? Estar entre artistas, conviver, herdar, produzir? Onde atua exatamente um curador? O que é possível dizer sobre uma exposição de Arte? Como classificar? Devem-se dar aspistas a que outros construam sentidos, quando até as etiquetas que identificam são abolidas?
Os curadores, historicamente são considerados elitistas e os educadores populistas na medida em que ambos influenciam a possibilidade de fruição do publico nas exposições de Arte. Não há um consenso e parece, a dialética desse conflito tem avançado e movimenta os espaços de frequentação artística.
A ação educativa é uma metodologia de mediação entre a instituição, o autor/curador que observa no trabalho de arte possibilidades disparadoras de compreensão dos públicos. Para que a mediação cultural na exposição de um artista ocorra, são necessários alguns requisitos, como os dados sobre a vida e obra do artista, e sobre o contexto histórico e artístico da produção vigente. Dessa forma, o público entendendo as imagens e sua representação no imaginário social, poderá identificar semelhanças, diversidades, peculiaridades e a importância de determinada manifestação artística.Sempre é significativo dar a entender acerca do quanto de produção foi realizada para que o repertório estético do autor seja visivelmente relevante, bem como quais bases artísticas podem estruturar a poética apresentada, mesmo esclarecendo que a formação acadêmica é muitas vezes desnecessária e em outras é até vista com preconceito por curadores, que acreditam nos processos subjetivos dos artistas cuja originalidade prescinde de escola, mas sim emergem e se desenvolvem a partir da automotivação.
A curadoria pública, com os visitantes definindo trabalhos para uma exposição fictícia, numa espécie de meta curadoria, tem sido eficiente na mediação quando ocorre, pois no processo de escolher as obras,se colocando no lugar do curador que previamente definiu a exposição é possível significar as decisões e provocar novas interações e leituras até então não percebidas, ou pouco ressaltadas. Apresento então minha curadoria pessoal.

BRAZILIAN WATERCOLOR
Minha obra preferida. Gostei da exposição, no geral, da montagem e da diversidade de técnicas expostas, mesmo por que não esperava uma coleção de naturezas mortas em óleo sobre tela, mas a “Aquarela Brasileira” me tocou especialmente pela tridimensionalidade que se constata nas fotos que registram essa instalação. Já vivi uma experiência pessoal nostálgica ouvindo Aquarela do Brasil, na voz de João Gilberto em disco de vinil, antecipando a saudade que sentiria do Brasil em 1988. Na época era uma sensação chorosa e desconfortável, de quem está entrando em um labirinto escapando de outra realidade, ou tornando palpável uma realidade de desilusão imaginada, que me fazia sair do país. Na época eu não aceitava a falta de sentido para a vida, ou a razão da morte. A AIDS amedrontava o mundo gay. O tempo passou. Até a falta de sentido faz algum sentido, somos enquanto Terra um grão cósmico na imensidão do universo. Suponho que o Claudio tenha encontrado as respostas que lhe eram devidas assim como é a todo ser; quanto a mim imagino que será fácil Deus explicar o sentido da vida, quero ver explicar o sentido da vida a uma pedra. E desejo que seja o que for que tenha sido a razão do seu impulso criativo “descriador” o resultado do que Claudio produziu corresponda ao esforço empreendido nesta jornada, pois afinal e contas isso foi a própria vida do artista.


COISA DE MUSEU

COISA
Objeto é coisa material e pode ser percebida pelos sentidos.
Coisa mental ou física para o qual converge o pensamento, o sentimento ou ação.
Assunto de uma pesquisa.
Agente, motivo, a causa.
Fim, propósito ou realidade apreendida.
Demanda em juízo.
Um postulado matemático, ponto, reta, equação.
Imagem que se forma no sistema óptico.
Do latim objectus, é aquilo que se apresenta aos olhos, obstáculo.
O obstáculo é o objeto pessoal significativo da minha trajetória. É o que me acompanha, e tem relevância. Seu valor é afetivo e serve para falar sobre mim. Assim, objeto de memória, ele poderá ter evocado o sabor da cera do lápis de cor que experimentei na infância. Lápis que riscava a folha branca de papel e que me fazia ver representadas as linhas das tiras de cetim branco trançadas das sapatilhas nos pés e tornozelos de uma bailarina de faces rosadas e saia armada. Minhas irmãs ensaiando o Lago dos Cisnes na sala de estar.Objeto é a saudade de escutar a valsa das Flores da Suíte Quebra Nozes de Tchaikovsky, rodopiando até tontear. Avistar o meu pai amado, olhar para minha mãe eterna, ver meus amigos mais queridos. Tocar a neve e sentir seu silêncio tremendo.
Meu objeto pessoal é meu corpo. E do meu corpo emanam todas as possiblidades e maravilhas sensoriais. O tato, a visão, o olfato, a audição, o paladar, até a intuição, o sonho, as inconsciências, as marcas e dores eprazeres significam importância e valor em minha existência.
Alguém dia desses, me disse quediferentemente do que imaginamos não é o corpo que contém a alma, mas ao contrário, é a nossa alma que vai com opassar da nossa existência aprendendo e apreendendo o corpo. A memória do corpo,a ilusão de um corpo possível:o objeto mais caro em mim. Ele me importa e me define. O corpo é objeto limitado quando na infância nos exige aprender, engatinhar, caminhar, correr, crescer. Na juventude ele é obstaculizadopelas responsabilidades, pelas exigências da maturidade, da autonomia, na inevitável consciência dos erros e acertos. Na velhice o corpo é objeto de cuidado e atenção, na medida em que as fragilidades vão se impondo.
No livro Introdução ao Pensamento Complexo, Edgar Morin descreve sobre o envelhecimento como ausência de morte. Ele explica que quando as células param de morrer elas deixam de se renovar e a velhice então apresenta os seus sinais até a morte do corpo. Sagrado, ao abandonar a vida na sua forma humana ainda permanecerá no planeta sendo ainda evolução, fazendo parte da Terra.A filosofia de Platão narra sobre a cama, que é ideia, cama que é matéria e cama que é representação ilusória. A cama serve ao corpo. Na História o corpo foi torturado, glorificado, moldado e libertado, modificado, genética e esteticamente transformado. Para a Religião o corpo não interessa. Na Arte, Picasso destrói o espaço de representação e os corpos angulosos da primeira pintura cubista impuseram uma nova compreensão estética. A vida é plena de sentidos do corpo nu, em pé, na escuridão, no meio do quarto, num romance de Clarice Lispector. Nos museus os corpos transitam e fruem de objetos que nada significariam não fosse essa presença humana. Os objetos são o meu corpo expresso, pois existem na medida da relação exercida pelo corpo.
Também aos outros meu corpo é objeto, na medida em que minha presença ocupa espaço/tempo/memória. Porque guardamos como objeto de afeto, de desejo, de motivo, de repulsa e de imagem acaba por se definir aquilo que somos coletivamente: o nosso corpo em corporativismo.