ASPERAMELODIA
Carlos Asp
- 70 anos
Historicamente as datas demarcam
tempos. O registro da passagem do tempo é único para cada momento. Podemos
dizer que o dia, o mês e o ano de um acontecimento, convencionalmente, não
permitem enganos. Os fatos estão inexoravelmenteligados ao tempo em que ocorrem.
Assim é com as pessoas. O momento e lugar de nascimento, o primeiro pensamento,
a linguagem, a compreensão dos sentidos, as fases do desenvolvimento sócio
cognitivo, as diversas descobertas de si e dos outros. Tudo existe sob a égide
do espaço e do tempo. Entretanto, se analisarmos os eventos não apenas pelas
datas das ocorrências, mas também através da apreensão de outros elementos: o
que comíamos, a que música escutava, se fazia frio ou calor,que roupa nós vestíamos,
com quem estava ali, se era noite ou dia, que fase da lua se desenhava no céu,
a posição dos outros planetas do sistema solar, os fatos mundiais, do país, do
estado, da cidade; é possível afirmar que teremos um espectro ampliado dos
episódios. Talvez isso não caiba num texto, nem numa conversa, muito menos numa
obra artística, pelo volume de informação que exige de quem a comunica e também
de quem a intui.Pois, expandir a percepção requer entendimento por vezes
indizível acerca do transitório efêmero que nos cerca.
Acerca
do terreno movediço que o apontamento das lembranças na memória registra,
devemos observar que:
As
pessoas que passam suas vidas lendo e tiram sua sabedoria dos livros são
semelhantes àquelas que a partir de muitas descrições de viagens, têm
informações precisas a respeito de um país. Elas podem fornecer muitos detalhes
sobre o lugar, mas no fundo não dispõem de nenhum conhecimento coerente claro e
profundo das características daquele país. Em compensação os homens que
dedicaram sua vida ao pensamento são como aqueles que estiveram em pessoa no
país: só eles sabem propriamente do que falam, conhecem as coisas de lá em seu
contexto e sentem-se em casa naquele lugar. (Schopenhauer, 2010:45)
Ainda
assim, por mais que estejamos imersos, impregnados na experiência histórica dos
fatos, algum esquecimento irá apagar,nas narrativas, lembranças:
Assim,
reconstituo um quadro, mas que é bem mais amplo, e onde me sinto singularmente
perdido. Desde esse momento fui arrastado sem dúvida pela corrente da vida
nacional, mas apenas senti-me arrebatado. Estava como um viajante sobre um
barco. As duas margens passam sob seus olhos o trajeto se enquadra bem nessa
paisagem, mas suponhamos que ele seja absorvido por alguma reflexão, ou
distraído por seus companheiros de viagem: não se ocupará com aquilo que se
passa sobre a margem senão de tempo em tempo; poderá mais tarde lembrar-se do
trajeto sem muito pensar nos detalhes da paisagem, ou então poderá seguir sem
muito pensar nos detalhes da paisagem, ou então poderá seguir o seu traçado
sobre um mapa; assim, encontrará talvez algumas lembranças esquecidas,
precisará outras. Porém, entre o país percorrido e o viajante não terá havido
realmente contato. (Halbwachs, 1990: 56)
No
campo da memória entre uma lembrança e outra, persistem vazios, lapsos,
brancos, como arestas invisíveis de um quadrado que inscreve em si uma circunferência.
Na arte o que preenche esses espaços é fenômeno de apreensão do objeto pelo
público mediado pelo suporte que por sua vez é também receptáculo do pensamento
criador do artista. Como descrito nas citações de Schopenhauer e Halbwachs, o
valor do conhecimento é revelado nas nuances da experiência coletiva que o
afirma Tendo em mente o aprofundamento necessário para compreender/ler
exposições em arte é necessário posicionar as condições em que uma determinada
exposição ocorre. A obra é elemento preponderante e orbitam ao seu redor os
instrumentos, os materiais e as ações que vão sustentar a intenção de
apresentação dessa obra.Na arte contemporânea a diversidade de possibilidades
da manifestação artística, que rompe com suportes e com cânones imagéticos, que
amplia conceitos estéticos e técnicos, inevitavelmente encaminha para aválida
multiplicidade de leituras, multiplicidade essa que muitas vezes é desejada por
quem produz a arte.
A
artista FaygaOstrower, referência estética de Asp, ao narrar sobre sua
experiência como educadora defendia a noção de que para que a arte exista é
necessário comunicá-la ao publico; ou seja, só uma mente criadora tem a
capacidade de produzir sentido ao apreender a expressão criadora. Esse é um
pressuposto que desmonta a ideia da arte figurativaque revela prontamente o que
representa.Fayga usava o argumento de que o gesto artístico é nunca repetível
na mesma medida em que o tempo não volta atrás. As condições em que eles se
apresentam, tempo e gesto, são únicos. Você pode estar perseguindo um ideal de
representação, um modelo, mas cada vez será uma ação exclusiva, subjetiva e
única. É impossível repetir o gesto sem repetir o momento, sem fazê-lo voltar
no tempo. No gesto infantil que desenha não há repetição porque sempre há
descoberta.Da representação infantil é sabido que os traços identificados em
garatujas correspondem a um estágio de apreensão do saber, das coisas, do mundo
ao redor na interação com instrumentos que posicionam as crianças em relação ao
espaço que ocupam acontecendo no espaço de representação da folha de papel ou
qualquer suporte chão pedaço de madeira ou parede da casa. A noção de olhar
criador do público na compreensão de que todo gesto artístico é único em
aparente repetição, qualificaa leitura sensível de uma exposição em arte.
A
exposição ASPERAMELODIA, comemorativa aos 70 anos de idade do Carlos Asp
reafirma e propõe questionamentos sobre imagens e imaginários. Ele pertence à
geração de artistas dos anos de 1960, integrou em Porto Alegre o coletivo
vanguardista Nervo Óptico - N.O., entre 1976 e 1978, conforme a curadora Ana
Albani de Carvalho descreve no texto de apresentação da exposição, que está
reproduzido em folder disponível aos visitantes da Pinacoteca.Atualmente vive
em Florianópolis. A montagem reuniu desenhos, objetos, escritos, instalações e documentos
do artista. Os desenhos e pinturas do salão de acesso estão dispostos na parede
fixados com um adesivo especial de forma a manter o suporte das obras,verso de
embalagens diversas,no formato original, sem uso das tradicionais molduras ou
vitrines envidraçadas. Mantém-se a linha de visão do público expondo
agrupamentos de trabalhos que entre si e no conjunto compõem uma espécie de
campo reticulado, onde variações de cor, espaço, aproximações e distanciamentos
de figuras diversificam o ritmodas formas articuladas visualmente.Uma dasobras
está suspensa deixando ver o lado oposto do suporte com imagens de rótulos dos
invólucros. Um banco está localizado no centro do espaço.
A
maneira de mostrar uma seleção de obras de arte reflete diretamente na curadoria
de qualquer exposição, pois é por meio da montagem, além, naturalmente, das
obras selecionadas, que o curador vai expor suas ideias. Seja estabelecendo
relações formais ou conceituais entre as peças expostas, seja localizando-as de
forma estratégica no espaço, a disposição das obras pode resultar numa
exposição eficaz, onde os diálogos propostos facilitam a compreensão dos
objetos expostos, ou num labirinto de ideias onde o visitante se sente perdido.
(Cintrão, 2010:15)
Nas
salas contíguas ao salão principal, estão expostas instalações junto de
documentos e outras imagens. Imagens florais e de representação de
paisagematribuem conotação temática da natureza aosobjetos. Um jardim com
flores estampa a coberta.
Um olho que imagina além do que vê,o espaço
tomado pelo movimento das coisas, a passagem do tempo, não o tempo histórico,
mas o tempo transitório. A manhã, à tarde, e a noite, a madrugada e a manhã
novamente. O movimento circular, a circularidade. Os astros? Dentro, fora,contido,
expandido. Campos relacionais? Ocultismo? Necessário o exercício criativo que
permita intuir outra compreensão das obras do Asp, para não se deixar levar
pela inquietação de que sua obra não importa.
Tradicionalmente
o pensamento de Marcel Duchamp tem sido considerado o responsável pelo
deslocamento conceitual dos objetos permitindo com que o discurso estético sobreponha-se
à poética visual. Movimentos artísticos consagrados pela história da arte
reforçam esses argumentos da vanguarda proposta pelo artista no inicio do
século XX. O que vemos na obra de Asp não foge ao que Duchamp iluminou,
ampliandoa força estética em sua obra justamente com ouso de materiais
precários. É evidente que, se o enunciado de Duchamp permanece atual, da mesma
forma a reação ao que o artista manifestouainda persiste em grande parte do
público frequentador de exposições. Eles consideram a obra de arte como produto
para deleite, anestésico com a função de encantar, reproduzindo um mundo de
beleza idealizada, mesmo que morto. Ainda quedatada, a arte contemporânea é
bastante desconhecida, de forma que fica sujeita a interpretações equivocadas,
e baixa aceitação, especialmente na população de menor escolaridade.Nomes como Bispo
do Rosário,Pablo Picasso,que dizia perseguir a espontaneidade infantil para a
resolução de cadaobra que produziu; Jean Michel-Basquiat,Iberê Camargo e Cy
Twonbly entre outros tantos, reconhecidos hoje como ícones,são exemplos de
artistas que imprimiram na história da arte seus inconfundíveis modos de
expressão utilizando-se de estratégias únicas. Na obra de Carlos Asp é possível
perceber seu engajamento com a livre expressão no decorrer do tempo que soube
reinventar em cada gesto consequente em obra. A exposição que homenageou o
artistanos seus 70 anos é o reconhecimento da comunidade artística de Porto
Alegrea sua persistênciaque ousa inaugurar “entre restos” formas de “pensar e
agir”.
Na
saída da Pinacoteca Ruben Berta, após visitar a exposição, entramos na crueza
da cidade. Automóveis, transeuntes, calçadas, ruas. Todo o caos urbano dessa
capital é atmosfera de imersão. Não imaginamos perambular sem rumo ao sabor do
vento, seguindo a direção das pessoas, guiados pela livre intuição para onde
ir, ou muito menos vamos atrás de onde o sol se põe. Não colocamos o dedo nas
paredes enquanto andamos para sentir a aspereza da tinta. Traçamos um destino a
cumprir, se mais lento seguimos a pé. Calculamos onde e quando queremos chegar
antevendo o que faremos então lá. Não é pressa nem correria, mas simplesmente
um jeito de lidar com nossas possibilidades ou necessidades. Enquanto isso,
jovem negro é assassinado, alguém descobre o amor, um velho bebe água, alguém
perde grana, uma criança chora de fome; um aprendizado, uma conquista, uma
queda, um respingo, um rasgo, um som, um tapa, um piscar de pestanas; tudo nos
acontece. Ou acontece com eles, que “no eslomismo
pero es igual”. Aquele silêncio aterrador, de quem está sem respostas para a
desesperança que insiste em combalir nossos esforços, se impõe. Então nós nos
sentimos vagando a esmo, mesmo que pareçamos de um jeito automático, cônscios
dos próprios passos. Daí é preciso lembrar, da razão/desrazão que possa, como
no fazer do CarlsoAsp, alinhar sentidos ainda que num mundo, onde falta sentido
ou justiça social, faltas que nos assolam em humanidade e coletividade. Onde o
artista encontra energia para persistir se arriscando em uma existência que
sabidamente efêmera cada dia mais quer se inventar imortal, e possuir
simplesmente, ilusoriamente, garantias enganosas de perenidade?
CINTRÃO,
Rejane. As montagens de exposições de
arte: dos salões de Paris ao MoMA. In: RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre
o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice. 1990.
SCHOPENHAUER,
Arthur. A arte de escrever. Porto
Alegre: L&PM,2010.