CLÁUDIO GOULART 19542005
CARTA INGÊNUA
Meu nome é Jorge. Caí em uma armadilha. Entrei em um labirinto e
não tenho alternativa senão achar a saída. Tento, mas não vejo como pensar nos
fatos que me trouxeram aqui pode diminuir os perigos e dificuldades que se
apresentarem nesse percurso. Posso tentar imaginar um jeito de marcar os
corredores para não me perder.Avistar a paisagem de fora será minha recompensa.
Não tenho compromisso em libertar nenhum povo, realizar qualquer proeza,
conquistar nenhum título. Por minha própria conta e risco arrisco minhas fichas
para continuar no jogo, simplesmente. Já perdi algumas batalhas na vida e suponho
que aprendi alguma coisa com os erros que me levaram às perdas, o que não
significa necessariamente vencer as batalhas que virão. Vencer ou conquistar,
aliás, são faces semânticas de uma mesma moeda que a luta cotidiana valoriza ou
menospreza. Sou onde não estou como agora em que essas palavras são lidas ou
descartadas.
*Cartas Ingênuas se tratava de um projeto de cartas abertas
endereçadas a autoridades brasileiras de diversas áreas. Conheci em 1985. O
conjunto de textos tinha função de externar o pensamento do escritor/remetente
aos leitores destinatários. Vinham dentro de um envelope criado pelo autor e
eram vendidas de forma independente.
A ARTE DE PERDER
O mapa da cidade é a anatomia de um corpo na visão do poeta.
Amsterdam e Porto Alegre: dois mapas, duas cidades, dois corpos. O corpo em duplicidade,
o corpo como ideia de que o corpo deva ser existência, o corpo sendo e o corpo
imaginado, representado. Elizabeth Bishop perdeu duas cidades, dois
continentes, e as chaves de casa, não foi um desastre como perder-se do corpo
querido.
Enquanto a Europa vivia os tempos derradeiros da guerra fria, e
preparava a unificação e o fim da divisão do mundo em blocos comunista e
capitalista, no Brasil a ditadura militar ia paulatinamente perdendo a
capacidade de camuflar os efeitos nefastos do golpe militar de 1964.
Em 1976, Claudio Goulart embarcava para aventurar-se como artista em
Amsterdam. O amigo e amor Flavio Pons seria o corpo a acolher Claudio no país.
Fazer brotar cidadania em terra estrangeira é árdua tarefa que requer desapego
imensurável de si. Por ser o local de escolha para sua morte, Amsterdam foi
esse lugar que aconteceu ao artista como pátria. Imagino que o Claudio tenha
sido um dos que ajudavam a divulgar em Porto Alegre as noticias que nos
chegavam, da liberdade sexual, da consciência ecológica, da descriminalização
das drogas, do uso de bicicletas na Holanda, especialmente em Amsterdam, como
manifestações que iriam povoar o imaginário dos jovens aqui na “carroça”.
Claudio soube manter-se conectado ao sistema internacional das
artes mediando a ambiguidade cultural destes dois continentes, de origem e de
escolha, expandindo o alcance por outros países onde seu trabalho pode ser
realizado.
CORPO
A história da Arte é a história do corpo. Desde a mão carimbada na
caverna da pré-história, passando pelas representações dos corpos sagrados,
mimetizados, até a desconstrução do corpo no espaço de representação e, hoje o
corpo fragmentado, reinventado na virtualização tecnológica.Na História o corpo
foi torturado, glorificado, moldado e libertado, modificado, genética e
esteticamente transformado.Picasso destruiu o espaço de representação e os
corpos angulosos da primeira pintura cubista impuseram uma nova compreensão
estética. A vida é plena de sentidos do corpo nu, em pé, na escuridão, no meio
do quarto, num romance de Clarice Lispector. Nos museus os corpos transitam e
fruem de objetos que nada significariam não fosse essa presença humana. Os
objetos são o corpo expresso, pois existem na medida da relação exercida pelo
corpo.
Também aos outros o corpo é objeto, na medida em que a presença
ocupa espaço/tempo/memória. Porque guardamos como objeto de afeto, de desejo,
de motivo, de repulsa e de imagem acaba por se definir aquilo que somos
coletivamente: o nosso corpo em corporativismo.
Nos anos de 1960, a Body Art prenunciava o engajamento que iria
radicalizar a arte não mais como representação e sim apresentação exigindo um
salto imaginativo para acompanhar a transcendência do objeto/suporte. A
pós-modernidade cujo auge ocorreu nos anos de 1980, apesar da revolução
tecnológica, cultural, em todos os sentidos da humanidade, não foi capaz de melhorar
desigualdades sociais.A arte produzida então ampliou exageradamente o leque de
manifestações. Nunca antes foi tão heterogênea em forma e conteúdo.
Vemos ainda hoje, no entanto, a fome dizimando populações no mundo
todo, guerras e desigualdade por todo lado, opressão capitalista que opera
agora com aparato tecnológico para a manutenção de exploração. Dominação de
corpos narcísicos, na necessidade dos tempos.
Do corpo emanam todas as possiblidades e maravilhas sensoriais. O
tato, a visão, o olfato, a audição, o paladar, até a intuição, o sonho, as
inconsciências, as marcas e dores e prazeres significam importância e valor da
existência humana. Mas não é o corpo que contém a alma, ao contrário, é a alma
que vai com o passar da existência sendo o corpo. A memória do corpo, a ilusão
de um corpo possível, o corpo importa e define. O corpo é objeto limitado
quando na infância exige aprender, engatinhar, caminhar, correr, crescer.
Na juventude ele é obstaculizado pelas responsabilidades, pelas
exigências da maturidade, da autonomia, na inevitável consciência dos erros e
acertos. Na velhice o corpo é alvo de cuidado e atenção, na medida em que as
fragilidades vão se impondo. Quando as células param de morrer elas deixam de
se renovar até a morte do corpo.
A pesquisa de Claudio em arte se contextualiza juntamente a
estética de outros artistas que,assim como ele, pertencem à geração consagrada
nos anos de 1980 e que de alguma forma usaram do corpo, e do próprio corpo para
embasar sua produção. Entre esses, os participantes da 16ª Bienal de São Paulo:
Hudinilson Jr., Vera Chaves Barcellos, Regina Silveira, Rafael França, Alex Fleming.
QUANDO O HORIZONTE É TÃO VASTO
Desenhos, colagens, objetos, vídeos, documentos, fotografias estão
expostos na galeria da Fundação Vera Chaves Barcellos.
A exposição poderia ser descrita como representativa da poética
visual do artista, que pesquisa diversas relações do corpo, com outros corpos,
com a dor, com o prazer, com o espaço, com o tempo, com as identidades, usando para
tal do próprio corpo, não como representação autobiográfica apenas, mas
explorando possibilidades que descontrói sua identidade no momento que a mesma
se apaga em função do discurso que a obra impõe.
Em vários trabalhos o artista se apresenta com venda nos olhos.
Por que não pode assistir ao mundo que o massacra, como um condenado em frente
ao pelotão de fuzilamento? Talvez. Mas pode ser também para que, bloqueando o
sentido da visão consiga enxergar para dentro de si, conscientemente acurando a
própria sensibilidade. Ou ainda para manifestar como num espelho a cegueira que
nos impede de perceber o que se passa ao nosso redor. Os desenhos e colagens
bastante simplificadas apontam para o desenvolvimento de ícones imagéticos que
se repetem como sinais gramaticais da escrita visual na obra. Há experiências
de uso da imagem em movimento. Meios de reprodução do trabalho em rede. A arte
postal, que é uma forma de atuar em rede prepara uma futura desconhecida forma de
continuidade então com aparato tecnológico da WEB. Os trabalhos com discurso
políticos queapresentam questões sociais, pensamentos sobre o corpo. Há muito
por ver conhecer de Claudio Goulart.
A arte exige criação de execução não repetível, pois o artista
impõe para si formas de trabalho que são peculiares a cada realização. Cada
solução especifica em cada tarefa deve resultar como algo que não poderia jamais
ter sido produzida de outra forma. É a busca da originalidade.Aindaassim sinais
da elaboração, nos andaimes invisíveis dessa construção que exigiu estudo e
experiência prévia sejam sentidos pois o artista desconstrói ao mesmo tempo que
acrescenta uma nova camada de sua percepção ao resultado apresenta. Neste
sentido Claudio Goulart é artista.
Em trabalho exaustivo e persistente de continuar sua obra ele se
mantém ora na luz outras na penumbra como novídeo onde dois corpos nus se
movimentam enrolados por fios como novelos, e nesse movimento, enquanto um
desenrola osfios de seu corpo o outro vai tendo o seu corpo coberto pelo mesmo
fio. Também sutilmente os dois corpos ao girarem se mostram mais ou menos
iluminados na tela, ou se escondem no lado pouco iluminado à medida que avançam
ou recuam.Metáfora de relações afetivas que oscilam da visibilidade ao
apagamento conforme espaço deum e outro, onde suas personas interagem.
AÇÃO EDUCATIVA
Quanto é preciso conhecer da Arte nos livros, na História, nos
relatos para que o repertório seja acionado e permita acessar, mediar o sistema
da Arte? Estar entre artistas, conviver, herdar, produzir? Onde atua exatamente
um curador? O que é possível dizer sobre uma exposição de Arte? Como
classificar? Devem-se dar aspistas a que outros construam sentidos, quando até
as etiquetas que identificam são abolidas?
Os curadores, historicamente são considerados elitistas e os
educadores populistas na medida em que ambos influenciam a possibilidade de
fruição do publico nas exposições de Arte. Não há um consenso e parece, a
dialética desse conflito tem avançado e movimenta os espaços de frequentação
artística.
A ação educativa é uma metodologia de mediação entre a
instituição, o autor/curador que observa no trabalho de arte possibilidades
disparadoras de compreensão dos públicos. Para que a mediação cultural na
exposição de um artista ocorra, são necessários alguns requisitos, como os
dados sobre a vida e obra do artista, e sobre o contexto histórico e artístico
da produção vigente. Dessa forma, o público entendendo as imagens e sua
representação no imaginário social, poderá identificar semelhanças,
diversidades, peculiaridades e a importância de determinada manifestação
artística.Sempre é significativo dar a entender acerca do quanto de produção
foi realizada para que o repertório estético do autor seja visivelmente
relevante, bem como quais bases artísticas podem estruturar a poética
apresentada, mesmo esclarecendo que a formação acadêmica é muitas vezes
desnecessária e em outras é até vista com preconceito por curadores, que
acreditam nos processos subjetivos dos artistas cuja originalidade prescinde de
escola, mas sim emergem e se desenvolvem a partir da automotivação.
A curadoria pública, com os visitantes definindo trabalhos para
uma exposição fictícia, numa espécie de meta curadoria, tem sido eficiente na
mediação quando ocorre, pois no processo de escolher as obras,se colocando no
lugar do curador que previamente definiu a exposição é possível significar as
decisões e provocar novas interações e leituras até então não percebidas, ou
pouco ressaltadas. Apresento então minha curadoria pessoal.
Minha obra preferida. Gostei da exposição, no geral, da montagem e
da diversidade de técnicas expostas, mesmo por que não esperava uma coleção de
naturezas mortas em óleo sobre tela, mas a “Aquarela Brasileira” me tocou
especialmente pela tridimensionalidade que se constata nas fotos que registram
essa instalação. Já vivi uma experiência pessoal nostálgica ouvindo Aquarela do
Brasil, na voz de João Gilberto em disco de vinil, antecipando a saudade que
sentiria do Brasil em 1988. Na época era uma sensação chorosa e desconfortável,
de quem está entrando em um labirinto escapando de outra realidade, ou tornando
palpável uma realidade de desilusão imaginada, que me fazia sair do país. Na
época eu não aceitava a falta de sentido para a vida, ou a razão da morte. A
AIDS amedrontava o mundo gay. O tempo passou. Até a falta de sentido faz algum
sentido, somos enquanto Terra um grão cósmico na imensidão do universo. Suponho
que o Claudio tenha encontrado as respostas que lhe eram devidas assim como é a
todo ser; quanto a mim imagino que será fácil Deus explicar o sentido da vida,
quero ver explicar o sentido da vida a uma pedra. E desejo que seja o que for
que tenha sido a razão do seu impulso criativo “descriador” o resultado do que
Claudio produziu corresponda ao esforço empreendido nesta jornada, pois afinal
e contas isso foi a própria vida do artista.